sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
A ciência básica é a base!
Belas palavras de Marco Melo. Conseguiu me convencer!
A ciência básica é a base!
Publicado em 12/12/2014 por Marco Melo em http://marcoarmello.wordpress.com/2014/12/12/cienciabasica/
Inspirado por um artigo que saiu esta semana, resolvi fazer aqui uma defesa da ciência básica. Virou moda hoje em dia dizer que “toda pesquisa deve ter uma aplicação, senão é desperdício de dinheiro público”. Essa é uma enorme bobagem e eu vou mostrar porquê.
Vamos começar pelo básico: o que é a ciência? Essa é uma pergunta mais complexa do que parece e você vai encontrar mais de uma definição em diferentes fontes. Indo à raiz da questão, a ciência é uma cultura humana, assim como várias outras. Sendo mais específico, ela é uma das grandes culturas humanas transnacionais e transtemporais que visam entender o mundo. Nessa mesma categoria podemos incluir a religião, a arte e a filosofia. Ciência e filosofia são culturas muito próximas e a diferença entre elas é que a filosofia almeja entender o mundo através apenas do raciocínio lógico, enquanto a ciência visa entender o mundo contrastando o que você espera por lógica contra o que você observa de fato no mundo real. Pode-se dizer que a filosofia é a mãe da ciência, por ser mais antiga e lhe fornecer suas principais ferramentas de pensamento.
Partindo do princípio de que a ciência é uma cultura preocupada em entender o mundo através da comparação entre expectativa e realidade, vale dizer que isso pode ser feito de diferentes formas e com diferentes objetivos. É aí que podemos subdividir a ciência de acordo com a finalidade de cada pesquisa: ciência básica, ciência aplicada, ciência translacional, ciência de desenvolvimento e ciência estratégica. A ciência básica se preocupa em responder perguntas que nascem puramente da curiosidade de um cientista sobre como o mundo funciona. A ciência aplicada visa responder perguntas específicas sobre a aplicação do conhecimento científico, normalmente com a intenção de gerar tecnologia em um sentido amplo (desde medicamentos até televisores e métodos de ensino). A ciência translacional visa ajudar a criar pontes entre a básica e a aplicada, de forma a facilitar a criação de tecnologia. A ciência de desenvolvimento visa desenvolver produtos a partir de aplicações recém-descobertas. E, por fim, a ciência estratégica visa criar a base operacional e de negócios para usar o conhecimento científico a fim de resolver uma meta aplicada, confundindo-se em grande parte com a ciência de desenvolvimento.
A ciência básica quase sempre parece tolice aos olhos do leigo. Qual seria a finalidade, por exemplo, de se estudar a composição química da saliva de um morcego-vampiro-comum? Que diabos leva um desocupado a estudar como as lagartixas andam pelas paredes? Para que serve descobrir que tipo de ultra-som um morcego emite em diferentes situações de caça? Qual seria a motivação de um desocupado que estuda a maneira como formigas se orientam no chão de um cerrado? O que leva um sujeito a estudar a maneira como a tinta nanquim se espalha em um copo d’água? Por que alguns nerds se preocuparam um dia em saber se seria possível passear pela antiga cidade de Königsberg, passando por todas as suas pontes, mas sem repetir nenhuma?
Infelizmente, muito do que fazemos na Ecologia e outras ciências ambientais é visto pelo público geral como “trabalhar de fiscal da natureza”.
No entanto, pesquisas aparentemente etéreas como as mencionadas acima criaram as bases para uma infinidade de aplicações práticas que salvam milhões de vidas todos os anos e tornam melhor a vida de outros milhões de pessoas. Vamos usar como exemplo o caso das pontes de Königsberg. No começo do século XVIII, alguns nerds da cidade de Königsberg, na Prússia (que atualmente se chama Kaliningrad e fica na Rússia), ficaram encucados com essa questão das pontes. Resolver esse problema se tornou uma verdadeira mania na cidade, mas ninguém conseguia chegar a uma solução convincente. Em 1736, Leonhard Euler, um matemático suíço que vivia lá na época, matou a charada e, de quebra, criou a teoria de grafos. Essa nova teoria lançou as bases para a teoria de redes, que é uma verdadeira febre hoje em dia. Ou seja, o que começou como uma brincadeira de nerds, típico probleminha de contracapa de revista de curiosidades, deu origem a uma das teorias mais aplicáveis da história, que nos ajuda a planejar e gerenciar desde malhas de aeroportos até redes de computadores, programas de despoluição e medicamentos.
Se o problema das Sete Pontes de Königsberg tivesse surgido hoje em dia, e um desses nerds tivesse submetido um projeto sobre o tema para uma agência de fomento, provavelmente teria ouvido que a idéia era perda de tempo, pois não tinha aplicação prática. Pior ainda, se o nerd tivesse sido convidado para um talk show da moda, certamente teria que aturar uma humilhação pública promovida por um apresentador que provavelmente não abriu um livro sequer no último ano.
Quem poderia imaginar que, na saliva dos morcegos-vampiros, seriam descobertas substâncias que hoje são usadas em medicamentos para a circulação?
Quem poderia imaginar que um cientista italiano, lá no século XIX, descobriria que morcegos usam ultra-sons para se orientar no escuro, e que essa descoberta fundamentaria tecnologias como o sonar de navios e o ultra-som médico?
Quem poderia imaginar que as idéias desenvolvidas por nerds brincando de jogar tinta em copos d’água dariam origem à teoria da percolação, usada para resolver um mundo de problemas práticos, que vão desde a descontaminação de áreas onde houve derramamento de óleo até o controle de epidemias?
Existem centenas de exemplos como os apresentados acima. Praticamente todas as grandes descobertas da humanidade, que mudaram nossa forma de nos vermos e vermos o mundo, nasceram a partir de pesquisa básica, orientada apenas pela curiosidade de um cientista. É claro que precisamos fazer também ciência aplicada, de desenvolvimento, translacional e estratégica. Essas abordagens são essenciais para salvar e melhorar a vida das pessoas. Mas não podemos nunca nos esquecer de que, para ser possível aplicar um conhecimento, primeiro é preciso que ele seja gerado (como aplicar o que não se sabe?).
O fato é que a modinha politicamente correta de desvalorizar a ciência básica tem graves consequências. Por exemplo, os taxonomistas, biólogos que classificam os seres vivos em espécies, estão em extinção, porque as agências de fomento acham que o dinheiro público é melhor empregado em pesquisas com aplicação mais clara. O fato é que a Taxonomia é base de toda a Biologia: sem uma boa classificação dos seres vivos não se faz mais nada. Vários outros ramos da ciência básica, em diferentes áreas, também estão em perigo. A situação é ainda mais séria em países que vivem sob ditaduras assumidas ou veladas, nas quais o líder ou um comitê qualquer de burocratas se outorgam o direito exclusivo de decidir quais pesquisas podem ou não ser feitas.
O que mais me assusta é notar que até mesmo alguns cientistas compram o discurso falacioso de que toda pesquisa precisa ter uma aplicação prevista a priori. Sempre foi comum ouvir esse argumento falacioso entre leigos, mas ouvi-lo de cientistas já é demais. Seja por estupidez ou competitividade (afinal de contas, os “aplicados” ficam com a maior fatia do bolo), isso é um verdadeiro tiro no pé. Quero ver os colegas que se acham melhores do que os outros só por fazerem pesquisa aplicada manterem linhas de investigação realmente inovadoras e relevantes sem lerem os papers da ciência básica.
Para quem ainda acha que os “fiscais da natureza” fingem que trabalham e apenas passeiam para floresta, estudando a patinha do besouro e sua relação com o sexo dos anjos, recomendo fortemente visitar sites como o do Instituto de Biomimetismo e rever seus preconceitos. As aplicações do conhecimento biológico de base são infinitas. E mais descobertas impactantes só serão feitas, enquanto cientistas curiosos e bem-treinados tiverem liberdade suficiente para estudar suas “questões intangíveis”.
Pensamento final: “se raiz forte, bonsai forte” (Myagi 1986).
Extraída de http://marcoarmello.wordpress.com/2014/12/12/cienciabasica/
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